quarta-feira, 2 de setembro de 2009



Izabel


“Isabel
pense em mim.
“Nossos dias de sol

eram assim”
Paralamas do Sucesso.

Iraílio passava o dia de cara amarrada, a boca murcha sem dentes. À noite tirava a roupa e ficava na cama deitado em posição fetal gritando por Izabel ou Isabel balançando a cabeça. Não sabíamos quem era. Pela manhã as queixas das enfermeiras por causa das fezes pelo chão, paredes e a urina no colchão. Não tocava a comida, jogava tudo ao chão, parecia criança desconsolada e enfurecida.

Já não caminhava. Nem conhecia a ninguém. Não tinha filhos ou parentes e apenas a uma enfermeira permitia que lhe desse banho e sopa. Nem mesmo com ela falava apenas ficava pacífico enquanto ela indiferente aos queixumes dele lhe enchia as colheres com a sopinha de arroz. O resto do tempo passava sentado na varanda da enfermaria.

Parecia distante. Olhando para o pavilhão em reforma. Estaria acompanhando o canto dos Bem te vi? Quando alguém se aproximava expulsava os desavisados exceto as enfermeiras dedicadas que nem ligavam para suas brigas.

Certa vez curioso pela história do homem que todos diziam intratável, fui vê-lo. Fiquei alguns minutos por ali perto dele, esperando alguma reação, não disse nada. Depois de longo tempo olhando para longe em outra conexão virou-se para mim e olhou-me nos olhos sem saber quem eu era. Era um olhar vazio de razão e nem mesmo se quisesse poderia dizer-me quem era, o que vivera, quais eram seus amores, seus sonhos e seus medos. Ainda assim eram olhos cheios de vida e sentimentos. Vi neles o desejo de viver de fazer coisas que a vida não lhe permitiria a viver novamente ou vivê-las pela primeira vez. Não voltei a vê-lo.

Mudei de enfermaria e soube semanas depois que havia falecido por pneumonia. Só na enfermaria recebendo e aceitando todo amor, o cuidado do banho, ser levado para tomar sol e tomar sopa pelas mãos de uma mulher desconhecida, uma enfermeira. Quantas vezes nossa sorte e nossas vidas mesmo estão nas mãos de totais estranhos para nós? Quantas pessoas tem a vida salva por um ato de solidariedade de alguém que resolve ajudar depois de um acidente. Outros desistem de matar-se ao encontrarem outra pessoa que esteja aberta a uma conversa. Tanto chegam desacordados aos serviços de saúde e a sorte destes depende de maqueiros, enfermeiros, médicos, técnicos de laboratório e tantos outros. Para os que cuidam da vida com amor sempre é dia de luta e nunca de desistir de viver e de cuidar.

O médico que preencheu o certificado de defunção contou-me depois, que descobriu nos documentos de Iraílio quem era Izabel, a mãe falecida quando ele tinha 15 anos de idade.

Suas opiniões são bem vindas. lamarcacuba@gmail.com

Um comentário:

  1. Belíssima história!
    O ser humano é profundamente complexo e tem segredos que ainda não os compreeendemos. Felizes aqueles que possuem sensibilidade para perceber e aceitar que há algo mais além do que nos impõe este mundo material.

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